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Still Moving Inside Me: a profundidade da imagem que se move em silêncio
É a imagem que fala.
Eu movo-me com ela e ela move-se comigo, é uma questão de respiração.
É prosaico, não é poético.
É a imagem que fala e eu falo com ela, não há argumento.
É livre, mas sem a minha acção, não existia.
E esta forma, fui eu que dei, com estas mãos.
Tempestades como as de Turner
A agitação toda dentro
Manifesto radical sem histeria, tomada de posição.
Para além dos seus limites, apenas a certeza
De que eu estive lá
E que ainda mexe cá dentro.
Da quietude da imagem nascem pensamentos que (se) debatem dentro de nós. Desenvolvida pela artista visual Tatiana Macedo, a exposição "Still Moving Inside Me" é uma metáfora silenciosa sobre a forma como absorvemos a realidade e sobre como, subtilmente, a sua imagem comunica com o nosso inconsciente.
A Braga Media Arts conversou com a artista visual sobre esta obra, acolhida pelo gnration até 28 de junho e trazida pela primeira vez a Braga a convite do CINEX, programa de cinema expandido da Braga 25.







Sem receio de desafiar e cruzar os conceitos da fotografia, cinema, som ou pintura, Tatiana Macedo - artista visual de referência e vencedora de distinções como o Prémio Sonae Media Art ou o SAW Film Prize (American Anthropological Association) - explora a imagem com e em todos os sentidos.
Pela primeira vez em Braga a convite do programa de cinema expandido CINEX, promovido pela Braga 25, a autora apresenta "Still Moving Inside Me", uma instalação vídeo multicanal que se serve do paradoxo linguístico da imagem para provocar a concentração e interpretação do espectador. Através de “janelas” audiovisuais que observam a realidade que cabe dentro do plano da câmara, a obra cria diferentes camadas e leituras sobre a forma como comunicamos com a imagem e sobre as emoções que o movimento e a quietude das ações despertam em cada ser.
Com o propósito de compreender e detalhar a génese deste trabalho, a equipa da Braga Media Arts questionou Tatiana Macedo sobre as motivações, inspirações e mensagens subliminares de "Still Moving Inside Me".
Braga Media Arts: Como surgiu todo o conceito por trás da construção de "Still Moving Inside Me”?
Tatiana Macedo: O projecto “Still Moving Inside Me” surgiu da minha vontade de criar uma instalação com material que tenho vindo a filmar, há já alguns anos, (e que continuarei a filmar) que têm uma particularidade: são na sua maioria planos fixos que enquadram uma acção que encontro, uma observação de um evento “real”, não escrito por mim, e que eu não controlo: não controlo aquilo que se mexe dentro do plano, como se mexe, a que ritmo se mexe, etc, mas o que consigo controlar é o enquadramento e a duração do plano. Este é um exercício que pratico há já muitos anos e que vou continuar a praticar.
O título é assim uma referência directa à imagem e ao que se move dentro dela, (é a imagem o sujeito da frase) mas é também uma alusão ao estado de conexão que eu tenho que ter no momento de filmar, naquele instante as coisas mexem dentro de mim e eu movo-me com elas, no sentido quase da respiração porque o tempo da filmagem é o tempo real. Ao definir um enquadramento defino uma série de pontos de partida ou de chegada transformando o que acontece lá dentro numa ficção ou numa dança, e espero até sentir que a acção ou dança chegaram ao fim. Defino os limites da imagem e do movimento e a sua duração, sou simultaneamente a directora de fotografia e a coreógrafa, mas quem exerce esse movimento, essa ‘dança’, move-se com a sua liberdade, que o espaço e o contexto podem condicionar, ou não. Há toda uma série de condicionamentos sociais, naturais, paisagísticos, arquitectónicos, e outros que interferem com esta “dança”. Eu sou apenas mais um desses elementos que lhes dá forma mas não os controla. É uma metáfora para a experiência da vida, talvez. E tudo se repete, em loops. É também inevitável pensar na História da Arte e da pintura, quando falamos de planos fixos, e obviamente do cinema.
BMA: De um ponto de vista mais prático, como é que está construída esta peça?
TM: “Still Moving Inside Me” está dividida em três peças, um pouco como numa sinfonia clássica: a primeira peça intitulada “Prelude: 2:00 am letters” (um loop infinito num ecrã na sala que serve de antecâmara); a segunda, que é a peça maior, com um loop de 17 minutos, é intitulada “Twin Mountains in 3 Movements” e também ela está dividida em três capítulos, por sua vez intitulados “I- Heads and Tails”, “II- Mushroom unaware of leaf” e “III-Turner’round”; e, por fim, a peça “Epilogue: Things in you that are things in me”. Todas elas foram filmadas em momentos e em geografias diferentes, sendo que existe uma cena que ocupa grande parte da acção, que retrata um grupo grande de jovens que faz um picnic no parque de uma cidade. A interação entre eles desencadeia um vasto leque de relações humanas e de emoções características do estar em contacto, em presença, em comunidade e em liberdade num espaço urbano, público, circunscrito.
BMA: O que é que te fascinou neste processo de “falar com a imagem” e na forma como esta influencia a visão e o comportamento do espectador?
TM: É um pouco o reverso do exercício da leitura: quando lemos uma prosa, ensaio ou poesia, imaginamos o que lemos de acordo com a nossa experiência pessoal, a nossa própria história, o nosso mundo interior. Quando o espectador se confronta com os mundos criados pelas minhas instalações, tem, na grande maioria das vezes, de criar esse texto, essa cadeia de significado e de narrativa, mais ou menos linear e sempre de acordo com o seu próprio mundo, perceção e experiência. Ler textos e ler imagens, é o mesmo exercício e requer trabalho e entrega, requer atenção e abertura, requer deixarmo-nos levar e aceitarmos a proposta. Mas raramente me seduzo pelo simbolismo, o que filmo é real, estava à minha frente, o que fiz foi uma transformação e construção a partir dessa observação. O jogo começa, portanto, comigo, no momento antes da decisão de filmar: há algo que me chama a atenção, que fala comigo, e a acção começa durante a captação da imagem em que uma série de decisões são já tomadas por mim relativamente ao que deixo dentro ou fora da imagem, ao que se move lá dentro e ao intervalo de tempo que lhe dou para se mover. Tomar estas decisões implica que eu me mexa também e que o compasso seja o mesmo. Naquele momento existe uma espécie de comunhão. Eu sou a primeira espectadora das minhas imagens, eu movo-me com elas e elas mexem-se dentro de mim.
Também é uma espécie de “dar voz ao silêncio para perceber o que o silêncio nos quer dizer”, como ouvi alguém dizer num programa de rádio recentemente, “ esticar a atenção e entregar-nos ao desconhecido”, sem uma voz ao ouvido.
BMA: Esta peça acaba por ser muito introspetiva e pessoal, não só para ti, ao partilhares a tua visão, mas para o público, na forma como a interpreta. Porque é que optaste por colocar essa liberdade de interpretação nas mãos do espectador?
TM: Eu faço sempre isso. Obrigo o espectador a ser activo, a fazer o trabalho que tem que fazer todos os dias e toda a vida: interpretar o que se acontece consigo e à sua volta. As minhas peças são microcosmos, pequenos mundos, quase sempre são acções num espaço circunscrito, pequenos gestos, micro-acontecimentos que se expandem para lá do enquadramento, ou seja, o que acontece dentro da imagem, na verdade, abre todo um campo subjectivo, sensorial, imaginativo e de relação com o mundo e com as ideias muito para lá dos limites da imagem. Mas são esses limites, juntamente com a escala e com a modulação rítmica sonora e entre os vários ecrãs e projeções, que definem a intensidade dessas acções, dos movimentos, dos espaços e dos tempos. É uma nova experiência que eu crio e dessa experiência ficarão resquícios impregnados no corpo de quem a ela se entregar. A partir desse momento a observação de alguém a passear num parque, ou de um surfista num parque no meio de uma cidade no inverno, transformar-se-ão em danças ou alegorias.
Como diz o Eduardo Brito no seu texto para a folha de sala: “a proposta pode ser outra: estar com o que se pode chamar de audiovisão: ver a música que se move dentro de nós, como a imagem de um domingo no parque, ouvir as imagens que se movem dentro de nós, como os andamentos de uma peça e música”.
BMA: Que papel tem a música de Berke Can Özcan na obra? De que forma é que ela se conecta com as tuas imagens?
TM: Cruzei-me com a música do Berke no início de Março deste ano. Foi como se nos conhecêssemos desde sempre. O Berke compõe da mesma forma que eu componho, a sua música convoca um universo imagético rico em camadas e de igual forma as minhas imagens têm inúmeras camadas sonoras, rítmicas, corpóreas, captações no campo (field recordings) ou de modulação emocional, da convocação de espaços e tempos distintos, dentro da experimentação e da improvisação, do free jazz à electrónica experimental ou ‘ambient’.
As minhas imagens da realidade, que se transformam numa realidade das imagens, acontece também com a música do Berke, que produz sons por vezes a partir de objectos do quotidiano ou de instrumentos que constrói, mas que depois desenham o seu próprio universo, também narrativo. Outro aspecto que nos une são as referências artísticas e musicais que ambos partilhamos, num universo lato que começa no John Cage e o loop enquanto forma e significado. Nesta peça selecionei composições maioritariamente do trabalho a solo do Berke, intitulado “Mountains are Mountains”, e redesenhei algumas delas com cortes, loops e sobreposições. No final, tive que equilibrar a justaposição sonora das várias peças no espaço para que a contaminação sonora de umas peças para outras funcionasse como uma terceira composição: a paisagem sonora global da própria exposição.
BMA: Esta é a primeira vez que apresentas o teu trabalho em Braga, a convite da Braga 25 - Capital Portuguesa da Cultura. De que forma é que a tua obra se insere no CINEX, a linha de programação de cinema expandido da Braga 25?
TM: O convite foi me feito pelo Luis Fernandes e o Eduardo Brito que já acompanham o meu trabalho há vários anos.
[Num outro momento, a artista refere ainda que] a Fotografia e o Cinema são tanto sobre aquilo que revelam como aquilo que escondem. Traçando uma analogia com o som, pode dizer-se que a Fotografia e o Cinema existem nos intervalos do silêncio.
[Sobre a obra e a sua inserção no programa CINEX, o curador Eduardo Brito escreve:]
O Cinema – expandido, por expandir ou em expansão – é uma viagem. Acontece no tempo, implica deslocação: começamos num ponto e terminamos noutro, início e fim do filme, seja na sala de cinema ou na galeria. Não há forma de fugir a isto: eis‑nos perante a força das imagens moventes. Se a esta força fundamental juntarmos a ilusão — fotográfica, auditiva, narrativa, relacional — a viagem torna‑‑se passagem: estamos do outro lado do espelho e, entre o mergulho e a contemplação, tornamo‑nos parte deste todo, sempre maior que a soma das partes.Tatiana Macedo e os vídeos que compõem a instalação Still Moving Inside Me, com música de Berke Can Özcan, trazem‑nos não só estas duas forças – a viagem; a ilusão –, mas também a potência da escuta como a figura do oito: a dada altura, é desnecessário tentar entender, procurar um significado, uma predominância: estaremos sempre de volta e de partida. Entre as incontáveis camadas e leituras desta obra – do seu alinhamento no caminho da artista, dos seus ecos no inventário pessoal de reminiscências de cada um – a proposta pode ser outra: estar com o que se pode chamar de audiovisão: ver a música que se move dentro de nós, como a imagem de um domingo no parque, ouvir as imagens que se movem dentro de nós, como os andamentos de uma peça de música. Parar e contemplar a viagem; derivar pelas imagens que se projectam em superfícies fixas: num caso, ver o travelling, no outro, sê‑lo.Por isso, desprendemo‑nos da curiosidade sobre o que estará a pensar o passageiro da frente em Prelude : 2:00 am letters; porém, se nos deixamos estar na viagem, tornamo‑nos na ilusão do seu pensamento. Desinteressamo‑nos sobre se o que vemos é um espelho ou panorama em Epilogue: things in you that are things in me: tornamo‑‑nos na ilusão de uma vigília no final da sesta. Em Mushroom unaware of leaf – segundo andamento de Twin Mountains in 3 movements ‑ dois céus nublados dão‑se a ver reflectidos numa superfície aquosa, depois, num deles, um corpo entra no plano: a aparência de um ser animado transforma‑se num ramo de árvore à deriva: coisas que se transformam noutras coisas, tempo de paragem, princípios elementares da criação. De novo a figura do oito.
A exposição está patente na Galeria Um do gnration até dia 28 de junho de 2025, com entrada gratuita. Conhece o trabalho de Tatiana Macedo aqui e sabe mais sobre "Still Moving Inside Me" em gnration.pt.
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Promovido pela Braga 25 – Capital Portuguesa da Cultura, o CINEX é uma linha de programação de cinema expandido que cruza os universos sonoro e visual para dar palco a novos olhares sobre a sétima arte.
Apoio: República Portuguesa – Cultura / Direção-Geral das Artes. RTCP – Rede de Teatros e Cineteatros Portugueses